Jussara Lucena, escritora

Textos

O jeitinho dela andar

Minha vida mudou radicalmente depois daquele concurso. Acostumado a vida pacata de uma cidade do interior, fui passar o período de adaptação ao novo cargo na Capital Fluminense, a Cidade Maravilhosa.

Muitas coisas passaram a acontecer pela primeira vez na minha vida a partir de então, como a primeira viagem de avião, por exemplo. Na segunda metade da década de 80 do século passado, tive o privilégio de voar pela Varig que até então eu só conhecia pelos jingles das propagandas de Natal veiculadas na televisão e que até hoje permanecem em minha memória. Naquela época ainda existia a Ponte Aérea Rio-São Paulo e os aviões Electra da Varig que com sua pintura característica conferiam charme ao trajeto de executivos, artistas, políticos e pessoas comuns como eu.

Eu fui na companhia de um novo colega de trabalho, mais acostumado as viagens e conhecedor de pontos interessantes da cidade do Rio de Janeiro. Chegamos num sábado à tarde, ficamos hospedados em um hotel em Copacabana.

Depois de acomodados fomos até a Cinelândia, tomamos um chope no Amarelinho e passeamos calmamente pela região, sem o burburinho de pessoas e amontoado de carros que eu vira na televisão ou nos filmes brasileiros da época que usavam a cidade como pano de fundo. Fiquei maravilhado com as construções e seus detalhes arquitetônicos. Enquanto muitos no Brasil exaltavam os cenários europeus, esqueciam de divulgar a beleza do Teatro Municipal ou da Biblioteca Nacional e outras tantas construções, herança do período Imperial e da época em que a cidade foi a Capital da República. Eu não sabia para onde olhar.

Na volta, ao anoitecer, a bordo de um ônibus da linha 132 eu contemplava maravilhado o relógio da Mesbla, o Aterro do Flamengo, o prédio da antiga TV Manchete, o Pão-de-Açúcar, a enseada de Botafogo e o Corcovado. Depois de muitas e muitas passagens pelo trajeto, hoje ainda procuro e encontro um pouco da magia das visões que tive naquela primeira vez.

Durante a noite, o silêncio do meu bairro deu lugar às buzinas e sirenes de ambulâncias que trafegavam durante a noite toda, pela Nossa Senhora de Copacabana e Barata Ribeiro. O movimento frenético é um dos componentes dessa mistura que faz a cidade diferente.

Na manha seguinte, um belo dia de sol, caminhamos pelo calçadão de Copacabana, pisamos a areia e assistimos, por um breve tempo, a uma partida de futebol. Eu mal podia esperar pela oportunidade de sentir toda aquela areia queimando a minha pele e a explosão em meu peito na comemoração de um gol durante um jogo na praia.

Chegada a hora do almoço, escolhemos um restaurante recomendado por outros colegas de curso e lá encontramos outras duas pessoas da turma. O local era bem frequentado, com muita gente bonita. Olhei para as minhas roupas e percebi que não combinavam muito com os costumes dali.

Tentando me ambientar, passei a examinar o cardápio oferecido pelo garçom. Escolhido o prato, olhei um pouco ao redor e a percebi mais detalhes do local e das pessoas. A mesa em frente a nossa estava vazia quando chegamos e naquele momento foi ocupada por um rapaz, duas senhoras e uma garota mais nova, com pouco mais de vinte anos, cuja presença não pude deixar de perceber.

Ela era uma morena do corpo bronzeado, cabelo ligeiramente queimado pelo sol. Trajava uma bermuda jeans e camiseta amarela. Chamava-me atenção a beleza dos olhos cor de mel e do sorriso. Também possuía belas pernas e um corpo perfeito.

Como na cidade em que eu morava predominava, durante a maior parte do ano, o frio e estávamos pelo menos trezentos quilômetros do mar, as garotas não costumavam mostrar nem um pouco do corpo e quando o faziam, deixavam à mostra a pele branca da pouca exposição ao sol. Assim, olhar discretamente para aquela bela carioquinha foi muito diferente e interessante.

Para minha surpresa, ela também parecia olhar para mim. Olhei para ela e nossos olhares se cruzaram. Não poderia ser! Ela era linda e eu, um peixe fora d’água. Conclui que teria sido apenas coincidência.

Baixei a cabeça e passei a degustar o meu filé à Oswaldo Aranha que àquela altura já estava servido. Disfarçadamente, voltei a olhar para ela. A garota não desviava o olhar e eu fiquei sem jeito. A cena se repetiu algumas vezes. Em voz baixa comentei o que acontecia com o meu colega ao lado. Num primeiro momento ele riu, duvidando que pudesse ser verdade. “Esta garota é capa de revista, não olharia para um de nós” – disse ele. Meu amigo também passou a observa-la e, reconhecendo o erro observou: “rapaz, hoje é seu dia de sorte!”.

O pano de fundo ganhava também uma trilha sonora e, no som ambiente do restaurante tocava “Ela é Carioca”, na voz do maestro Tom Jobim. Sorri comigo mesmo quando associei o jeitinho dela andar da canção com o caminhar da garota da mesa em frente.

Encorajado pelos colegas que comigo dividiam a mesa pensei em como abordá-la. Fizemos com que a nossa refeição durasse o mesmo tempo que a da mesa dela. A senhora mais velha foi até o caixa pagar a conta e as outras pessoas que a acompanhavam foram até próximo da saída do restaurante, beber um café. Este seria o momento!

Com cuidado me aproximei e toquei levemente o seu ombro. Ela, surpresa, virou-se. Eu sorri ao que ela retribuiu com um leve movimento no lábio, mas sem mostrar a alva dentição. As palavras demoraram um pouco a sair da minha boca, engasguei. Isto me permitiu observa-la de perto e com um pouco mais de atenção. Seu rosto estava direcionado para mim, mas seus olhos miravam fixamente o arbusto plantado no vaso ao meu lado. Dei um passo para o lado, ela seguiu meu movimento com o rosto, porém seus olhos fixaram o vazio da porta de saída.

Percebendo o ocorrido, fiquei sem jeito, perguntei a ela se a bolsa que havia ficado na mesa era dela. Quando ela se virou para olhar em direção à mesa, pedi desculpas, a verdadeira dona já havia pegado o objeto esquecido. Ela assentiu com a cabeça, sorriu e continuou a conversar com a amiga que bebericava o cafezinho. O estrabismo a deixava ainda mais linda.

Num outro dia voltei a encontra-la e, por muito tempo, aqueles belos olhos olharam verdadeiramente para mim.

São incontáveis as vezes que retornei à cidade. Em cada estadia descubro algo novo e ela se mostra ainda mais receptiva, hospitaleira e bela. Rio de Janeiro, como eu gosto de você!

Texto selecionado para compor a antologia Rio em prosa & verso, elaborada pela Editora Comunicação em outubro de 2015.

Adnelson Campos
04/12/2015

 

 

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